sexta-feira, 30 de julho de 2010

A Pipoca de Rubem Alves

                                                  "A Pipoca

A culinária me fascina. De vez em quando eu até me atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nóbis, picadinho de carne com tomate, feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo- porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas,  para mim,  são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginiei , entretanto , que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso o que me aconteceu. A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa,  sem dimensões metafísicas  ou psicanalísticas. Entretanto, dias atrás , conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas ideias começaram a estourar como pipocas. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um estraordinário objeto poético. Poético porque,  ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela.

Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos,  religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria(porque vida,  só vida, sem alegria, não é vida...) Pão e vinho devem ser bebidos juntos.

Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, da lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do candomblé.

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois foi o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas, se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente das crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que isso tem a ver com o candomblé? É que a transformação do milho duro  em pipoca macia é símbolo da grande transformação por que devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer; pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa voltar a ser crianças!

Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.

Milho de pipoca que não passa pelo fogo, continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo, fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e de uma natureza assombrosas. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem o fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente: pense que a sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! - e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressureição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. "Morre e transforma-te!"- dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando com os piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que sejam. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William, extraordinário professor- pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem. Por exemplo:  em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: quem preservar a sua vida perde-la-á. Sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira."